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A primeira infância

Valor Econômico


Nessa época de discussão de programas dos candidatos a presidente, é importante entendermos o papel da primeira infância para o desenvolvimento futuro das pessoas e para o país como um todo. Se quisermos ter um país com mais igualdade de oportunidades, será necessário investirmos mais na primeira infância.

A primeira infância compreende o período entre o nascimento e os 6 anos de idade¹. É nesse período que são construídas as estruturas e circuitos cerebrais necessários para a realização de tarefas que vão se tornando cada vez mais complexas. Na verdade, o cérebro começa a se desenvolver na gestação, com a formação dos neurônios e das conexões entre eles, as chamadas sinapses. Centenas de novas sinapses são formadas por segundo no início da vida. Posteriormente, as sinapses que não foram utilizadas são eliminadas. Por exemplo, já a partir do 2º semestre de vida as crianças tem muito mais facilidade para reconhecer os fonemas da língua mãe.

É importante ressaltar que a estrutura cerebral vai sendo esculpida a partir da interação da criança com o meio ambiente. Durante esses períodos de rápido desenvolvimento (“períodos sensíveis”), o cérebro tem muita plasticidade e será diretamente afetado pelas experiências da criança. Por exemplo, as crianças que não tiverem acesso à luz após o nascimento poderão ter problemas no aparelho visual para o resto da vida.

Mas esses períodos também são sensíveis a estímulos negativos. Se a criança não receber estímulos adequados durante a primeira infância ou se sofrer estresse prolongado, por exemplo, ela poderá ter alterações na formação dos seus circuitos neuronais e sofrer vários problemas de saúde no futuro, tais como doenças cardiovasculares, ansiedade e depressão. Assim, os custos dos problemas surgidos na infância vão se acumulando ao longo do tempo.

Estudos recentes mostram que estresse e problemas de nutrição durante a gravidez também podem ter muito impacto na vida futura das crianças. O feto usa as condições da mãe durante a gravidez para ter “pistas”‘ sobre como será o seu meio ambiente no futuro e adapta sua formação para sobreviver melhor nesse ambiente. Os problemas aparecem quando as condições no futuro são muito diferentes do ambiente intrauterino. Por exemplo, se faltarem nutrientes no início da gestação, o feto pode “entender” que a vida será dura e formar mecanismos biológicos de proteção que dificilmente poderão ser revertidos. Se a vida no futuro não for tão dura assim, essa programação pode causar problemas de metabolismo, tais como pressão alta, diabetes e obesidade.

No final da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os nazistas restringiram a entrada de comida na Holanda por um período de 7 meses. Nesse período, o consumo calórico médio dos holandeses se reduziu de 1800 para cerca de 400 calorias por dia. Após a liberação da Holanda, a alimentação voltou rapidamente para seus níveis normais. Estudos mostram que os bebês expostos à fome no 3º trimestre da gravidez nasceram com peso e comprimento menores do que os que nasceram logo antes ou logo depois do “inverno da fome”. Mais ainda, quando eles atingiram a meia-idade, esses bebês tornaram-se mais obesos, tiveram mais ataques do coração e problemas mentais do que os que nasceram em condições normais.

Assim, programas que aliviam a situação das mães e das crianças nas famílias mais pobres têm vários efeitos importantes ao longo da vida. As crianças aprendem com os seus relacionamentos afetivos desde o nascimento. Para que elas tenham um desenvolvimento saudável, as crianças precisam ter nutrição adequada, um ambiente familiar afetivo e seguro, serem constantemente estimuladas e, posteriormente, uma educação de qualidade. Ou seja, o investimento público para as crianças em situação de vulnerabilidade tem que ser elevado e começar muito antes delas entrarem na escola.

Pesquisas recentes mostram como a introdução dos cupons de alimentação (“food stamps”) nos Estados Unidos na década de 60 aumentou o peso ao nascer e o comprimento das crianças nas cidades que introduziram o programa primeiro e também reduziu a incidência de vários problemas de metabolismo nessas crianças quando elas se tornaram adultas.

Nesse contexto, podemos pensar no que ocorreu com as crianças que nasceram em famílias pobres no Brasil desde o descobrimento até o final dos anos 80. Por razões ainda difíceis de entender, o Brasil só passou a investir seriamente nas suas crianças pobres a partir do final dos anos 80, com a criação do SUS e o programa saúde da família.

Assim, grande parte dos adultos de hoje que nasceram em famílias pobres teve um desenvolvimento infantil muito “estressante” e hoje em dia sofre com vários problemas físicos e mentais por conta disso. Muitos deles recebem transferências dos programas Bolsa Família e do BPC e não conseguem se encaixar no mercado de trabalho porque não têm as habilidades mínimas necessárias para isso.

Em suma, o retorno econômico dos investimentos públicos na primeira infância é mais alto do que os realizados em qualquer outro período da vida. Assim, seria importante que as equipes econômicas dos candidatos a presidente priorizassem em seus programas de governo os investimentos nas famílias pobres com crianças. Esses investimentos não podem diminuir nem mesmo em períodos de recessão. Nossa única oportunidade de sairmos da crise de produtividade que persiste por quase três décadas é investirmos nas novas gerações. Elas precisam crescer numa sociedade com mais igualdade de oportunidades, algo que não existiu até hoje no Brasil.

1- Ver o artigo “O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a Aprendizagem”, produzido pelo Núcleo Ciência Pela Infância.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho