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O problema não é o teto de gastos, mas privilégios como os do Judiciário

Folha de São Paulo


A história provavelmente aconteceu, embora os personagens sejam, como de hábito, desconhecidos. De qualquer modo, um jogador de futebol, ao ser questionado sobre o motivo pelo qual ele e seus colegas repetiam sempre as mesmas respostas, teria parado um momento para refletir e disparado: “Não sei; talvez porque vocês façam sempre as mesmas perguntas”.

Conto o episódio preventivamente: caso um dos 18 leitores tenha a sensação de já ter lido esta coluna, saiba que eu também tenho a sensação de já tê-la escrito. O chato não é escrever sempre a mesma coisa, mas perceber como certas questões permanecem rigorosamente imutáveis.

Refiro-me à proposta de aumento dos salários dos ministros de Supremo, justificada por Ricardo Lewandowski pela situação de “penúria extrema” dos aposentados do Judiciário, ecoando, não por acaso, a ex-ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois, que pretendia somar ao seu vencimento ministerial a aposentadoria como desembargadora argumentando que, se não fosse atendida, trabalharia sob condições análogas à escravidão por receber apenas R$ 33 mil/mês (Lewandowski ganha R$ 37,5 mil/mês).

Quando consegui controlar o choro copioso que me acometeu ao imaginar os pobres aposentados do Judiciário (ao menos, me consolei, não estão sob regime análogo à escravidão), endureci meu coração, como ensinado no curso de economia, e fui atrás dos números.

Descobri, por exemplo, que, em 2015, de um total de 162 milhões de pessoas de 15 anos ou mais de idade, apenas 708 mil (0,4% do total) recebiam valores superiores a 20 salários mínimos por mês.

Como, a preços de hoje, o salário mínimo de 2015 equivaleria a R$ 918/mês, falamos de um universo de pessoas cujo rendimento ultrapassaria hoje R$ 18 mil/mês (os aposentados do Judiciário recebem, em média, R$ 18 mil/mês).

Já a faixa média de renda do 0,4% atingia R$ 28,5 mil/mês também a preços de hoje, ou seja, mesmo dentro desse seleto clube os salários dos ministros do Supremo superam em cerca de 18% (31%, no caso de Lewandowski) o rendimento médio do grupo (e isso sem contar os eventuais “penduricalhos” associados à função).

Esse número, porém, considera apenas o aumento dos ministros do Supremo. Incluindo os efeitos cascata por causa da elevação do teto salarial do setor público, de aumentos similares não só do Judiciário mas também do Ministério Público, bem como de estados e municípios, há quem estime que a conta do “modestíssimo reajuste de 16%” seja da ordem de R$ 4 bilhões/ano, ou seja, cerca de quatro Lava Jatos por ano.

É bem verdade que o montante empalidece diante do gasto dos três níveis de governo no ano passado, R$ 3,1 trilhões, mas equivale ao orçamento anual da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que na semana passada motivou (de forma equivocada, diga-se de passagem) protestos contra o teto de gastos.

Diante das mesmas questões, as conclusões são as mesmas:

a) o Estado brasileiro foi capturado por grupos de interesse, que canalizam para si fração considerável da renda da sociedade, no caso o funcionalismo, que se apropria de pouco menos de metade do gasto dos três níveis de governo, ou seja, cerca de 22% do PIB; e

b) o problema não é o teto de gastos, mas a existência de privilégios na escala exposta acima.

Se não mudarmos esse estado de coisas, uma séria crise fiscal será apenas questão de tempo.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Alexandre Schwartsman