Folha de São Paulo
Para estudiosa da corrupção, êxito dependerá da capacidade do ministro de contornar oposição
Estudiosa do fenômeno da corrupção, a economista Maria Cristina Pinotti afirma que o pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, poderá tornar o sistema judicial brasileiro mais eficiente, mas seu êxito dependerá da capacidade que ele terá de contornar as resistências políticas às medidas que propôs.
Para Pinotti, a aplicação de penas rigorosas como as impostas pela Operação Lava Jato a políticos e empresários é um avanço, mas não é suficiente para conter a corrupção sem reformas mais profundas na administração pública, no sistema político e em instituições como as do Judiciário.
“Quando [a Justiça] é rápida e eficiente, e parece justa para a população, as pessoas mudam”, diz. “Isso contribui para conter a corrupção, porque os custos da transação ilícita e o risco de punição ficam mais evidentes.”
Sócia da consultoria fundada pelo ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, seu marido, Pinotti é a organizadora do recém-lançado “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas”, que reúne artigos sobre o combate à corrupção no Brasil e na Itália, incluindo um texto de Moro.
Ao comparar as experiências dos dois países, a economista diz que a ineficiência do sistema judicial no Brasil pode contribuir mais para minar a confiança da população na Justiça do que medidas como as tomadas pelos políticos italianos para frear o avanço das investigações da Operação Mãos Limpas nos anos 90.
A sra. atribui o declínio econômico da Itália em parte à falta de confiança da população no Judiciário. O Brasil corre o mesmo risco? Houve na Itália uma campanha difamatória contra o Judiciário após a Operação Mãos Limpas. Não vejo a mesma coisa acontecendo aqui, mas falta eficiência ao Judiciário brasileiro e isso mina sua credibilidade.
Quem pode pagar bons advogados nunca tem problemas, enquanto a pessoa que rouba um quilo de carne para comer sempre corre risco de ir para cadeia. Além de lento e ineficiente, o Judiciário não funciona de forma igual para todos e isso precisa mudar.
Ao impor penas duras a políticos e empresários poderosos, a Lava Jato foi um caso isolado? A Lava Jato, assim como o julgamento do mensalão, mostrou que é possível corrigir a ineficiência do Judiciário com um pouco de vontade e mudanças de caráter institucional como as que deram impulso às investigações.
É preciso evitar retrocessos, como seria o caso se o Supremo Tribunal Federal revisse novamente a jurisprudência que autoriza prisões de condenados em segunda instância, que se revelou crucial para fazer a Justiça funcionar.
Quando ela é rápida e eficiente, e parece justa para a população, as pessoas mudam seu comportamento. Isso contribui para conter a corrupção, porque os custos da transação ilícita e o risco de punição ficam mais evidentes.
A corrupção não acabou com a Lava Jato, e muitos crimes foram cometidos mesmo com as investigações em andamento. Por quê? A corrupção sistêmica, como a que temos no Brasil, tem mecanismos próprios para se manter. A Lava Jato quebrou um pedaço disso no nível federal, mas imagina-se que ela é ainda maior nos estados e nos municípios.
Toda sociedade pode ser dividida em três partes. Há um grupo incorruptível e outro que sempre age errado. E há uma grande maioria que não gosta de agir fora da lei e gostaria de ser honesta sempre, mas acaba fazendo coisas erradas porque os outros fazem.
É nesse ambiente que a corrupção sistêmica se desenvolve. Se os políticos não dão o exemplo, se a sensação de impunidade se dissemina, a maioria indecisa entre delinquir ou não perde a inibição. Se o vizinho faz algo errado e é punido, ela começa a pensar três vezes antes de fazer igual.
Prender e punir é suficiente? Não. É condição necessária, mas é preciso muito mais. Tem que reformar instituições, mexer na administração pública, pensar no que é preciso fazer para aumentar a eficiência do setor público e evitar o mau uso dos recursos.
Sempre lembrando que, por melhor que seja o desenho das instituições, elas não são infalíveis. Sempre vai depender de quem as habita, e é só pensar no que aconteceu na Petrobras para entender isso. Precisamos de leis que garantam transparência, concorrência, meritocracia. O cartel das empreiteiras na Petrobras agiu a céu aberto por décadas.
Nos Estados Unidos, em geral visto como um país menos corrupto, empresas financiam campanhas políticas e o lobby é regulamentado. O Brasil faz bem ao pôr essas atividades na ilegalidade? É preciso analisar o arcabouço institucional de cada país, e não apenas medidas isoladas. Permitir doações de empresas com transparência e regras rígidas como nos EUA pode ser uma boa saída, mas tudo pode ser burlado num país sem tradição de Judiciário independente e eficiente.
A regulamentação do lobby é um terreno escorregadio. Há zonas cinzentas nos EUA, onde ele se aproxima da corrupção. O Brasil terá de enfrentar o problema em algum momento, mas não sei se agora.
A decisão do ministro Sergio Moro de trocar a magistratura pela política reavivou questionamentos à sua imparcialidade como juiz na Lava Jato. Acha que isso contribui para minar a confiança no Judiciário? Não. Ele provou coragem, eficiência e capacidade de trabalho à frente da Lava Jato. Entrou no governo porque viu uma oportunidade de avançar no enfrentamento da corrupção, com carta branca.
Se vai conseguir, é outra história, porque não depende só dele e o sistema político é contra determinadas medidas. Ele corre o risco de sair arranhado. Mas acho que o país precisa desse tipo de coragem e desprendimento.
O pacote anticrime que ele propôs endurece a legislação penal sem avançar na direção de outras reformas como as que você sugeriu antes. O que achou? O projeto me pareceu bastante abrangente, ainda mais se você considerar que foram somente dois meses de trabalho. Pode contribuir para arejar o direito brasileiro e aumentar a eficiência do Judiciário. Mais coisas poderão ser feitas com o tempo.
Moro afirmou confiar no ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que admitiu ter recebido doações ilegais no passado, e adotou discrição diante de outros colegas de governo sob suspeita. Não parece contraditório? Se a corrupção se tornou sistêmica no Brasil, como mostram todas as evidências, isso significa que muita gente fez coisa errada. Vai ser difícil punir todos. Não tem cadeia para todo mundo.
A melhor estratégia é investir nos casos mais contundentes, nos peixes grandes, e mostrar que esses desvios são inaceitáveis. O que aparecer de malfeito tem que ser investigado e punido, sem abrir brecha para ninguém. Mas continuaremos vendo casos menores como esses com frequência.
Surgiram evidências de que o PSL, partido de Bolsonaro, patrocinou candidaturas de fachada para desviar recursos públicos que recebeu. A proibição às doações políticas das empresas foi eficaz? É cedo para dizer. O veto às doações das empresas foi uma medida drástica, mas era necessário. Não dá para permitir que empresas que tenham negócios com o governo possam financiar os partidos políticos.
Mas também não gosto da farra com o sistema de financiamento público. Precisamos reduzir os custos das campanhas e mexer na estrutura do sistema partidário. O mais importante é saber se a nova cláusula de barreira criada para conter a proliferação de pequenos partidos irá funcionar.
Acha possível no Brasil uma reação do sistema político como a que ocorreu na Itália? A Lava Jato foi beneficiada por uma revolução tecnológica, que permitiu não só o avanço das investigações, mas a transmissão online de depoimentos e delações, ao vivo e a cores. As revelações e a transparência do processo garantiram à operação um apoio que os italianos nunca tiveram.
No mundo inteiro, os parlamentos são refratários a medidas que reduzam a corrupção e funcionam como um dique. Foi assim que, na Itália, acabaram com a Mãos Limpas. Aqui, a pressão da opinião pública impediu várias tentativas de acabar com a Lava Jato, e foram muitas. Acho que estamos no caminho certo.
Maria Cristina Pinotti, 64, é formada em administração pública na Fundação Getúlio Vargas e doutora em economia pela Universidade de São Paulo. Ela é sócia da consultoria A. C. Pastore & Associados, fundada pelo ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, seu marido, e diretora do Centro de Debate de Políticas Públicas. Dedicada há vários anos ao estudo da corrupção e da experiência da Operação Mãos Limpas na Itália, Pinotti é a organizadora de uma coletânea de artigos lançada neste mês, “Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas” (Portfolio Penguin, 256 págs.).
Por Ricardo Balthazar