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Cold Turkey

Fico a cada dia mais convencido que a proposta de criação de um regime de capitalização nos marcos do projeto de reforma da previdência só serve para conturbar o processo. A começar porque jamais ficou claro qual o alcance da proposta. No caso, as indicações de que o ministro pensa numa transição cold turkey para o regime de capitalização são preocupantes, como espero mostrar neste espaço.

Podemos pensar o regime de repartição da seguinte forma: há uma geração em atividade e uma geração aposentada; os ativos transferem aos aposentados parcela de sua renda, habilitando-os a continuar a consumir e, em troca (imaginam), serão tratados da mesma forma quando passarem para o segundo time.

Por mais que este arranjo se pareça com uma “pirâmide financeira”, ele não o é necessariamente. Se a demografia permanecer aproximadamente constante, em particular o tamanho relativo da geração aposentada na comparação com a ativa (às vezes denominado “razão de dependência”) e o valor das aposentadorias não se elevar relativamente ao valor dos salários na ativa, o sistema pode funcionar indefinidamente.

Na prática, porém, mudanças demográficas não apenas ocorrem, como tipicamente causam estrago considerável nas contas previdenciárias. Seja pelo envelhecimento da população (que eleva o tamanho da geração aposentada), seja pela redução da taxa de natalidade (que reduz o tamanho da geração ativa), a relação entre aposentados e ativos cresce ao longo do tempo.

Para manter o equilíbrio (ou diminuir o desequilíbrio) do regime são necessárias alterações: elevação da idade de aposentadoria (que reduz a geração de aposentados e aumenta a de ativos), maiores contribuições de ativos, bem como possíveis limites ao valor das aposentadorias. São estas, em grandes linhas, as principais medidas do projeto de reforma previdenciária, complementados por regras de transição que buscam mitigar mudanças bruscas para quem já se encontra perto da aposentadoria.

Os problemas da transição demográfica, que afligem os regimes de repartição, como regra não têm o mesmo efeito no caso dos regimes de capitalização, desde que bem desenhados. Nestes a geração ativa contribui para contas individuais ao longo de sua vida de trabalho e o valor lá aplicado pode ser usado durante seu período de aposentadoria.

Há dificuldades técnicas que não devem ser subestimadas: em particular o cálculo atuarial deve ser preciso, ou seja, em média o valor capitalizado durante o período ativo deve ser suficiente para bancar o período de aposentadoria. Todavia, se o cálculo for preciso, o regime se mantém indefinidamente, mesmo face a mudanças demográficas. Deve ficar claro que sob a versão pura deste regime não há déficits persistentes: cada um recebe aquilo que poupou e eventuais desvios devem se anular ao longo do tempo.

O problema, contudo, é transitar de um regime a outro. No período de transição os aportes da geração ativa não mais financiam as pensões da atual geração aposentada, que, contudo, ainda precisa ser paga porque já contribuiu para financiar a geração anterior. Caso o governo não consiga produzir um superávit em suas demais contas para compensar o déficit de transição, seu endividamento crescerá aceleradamente.

No caso do Brasil, mantendo o foco apenas no INSS (para simplificar), notamos que o déficit da previdência atingiu nos 12 meses terminados em fevereiro R$ 198 bilhões (a preços constantes), enquanto o déficit primário do governo central atingiu, no mesmo período, R$ 122 bilhões, ou seja, previdência à parte, o governo central produziu superávit de R$ 76 bilhões.

Numa transição cold turkey para um regime de capitalização o governo central abriria mão de pouco mais de R$ 400 bilhões em receitas, que seriam direcionadas para contas individuais e o déficit primário saltaria para R$ 522 bilhões. Apenas para manter o déficit atual, o governo central ex-previdência teria que produzir um superávit primário de R$ 476 bilhões, tarefa impossível, considerando que o conjunto de todos os gastos não-previdenciários no período mais recente atingiu R$ 780 bilhões. Posto de outra forma, para compensar a perda da receita previdenciária o governo teria que reduzir em pouco mais de 50% todos seus gastos não-previdenciários.

Deve ficar claro que a transição cold turkey é inviável. Há, é verdade, alternativas.

Se formos tomar, por exemplo, o excelente trabalho de Paulo Tafner e coautores, a capitalização seria feita de forma complementar ao regime de repartição. Uma vez definido o teto do regime de repartição, quem recebe mais contribuiria com um percentual sobre o valor que ultrapassasse o teto. Em particular, na versão de Tafner, apenas a geração 7 a 1 (isto é, os nascidos a partir de 2014, que entrarão no mercado de trabalho em meados da década de 30) é que estariam sujeitos a este modelo.

Este desenho não só “empurra” a transição uns 20 e tantos anos para a frente, como também não implica a renúncia às contribuições advindas da repartição.

Infelizmente não parece que os formuladores do projeto atual pensem desta forma. Não está claro no texto da reforma propriamente dita, que remete a capitalização para lei complementar, mas as manifestações do ministro da Economia sugerem que sua proposta está mais próxima da versão cold turkey do que da idealizada por Tafner.

Por vezes aparenta sugerir que a economia de pouco mais de R$ 1 trilhão ao longo de 10 anos que seria obtida em caso de aprovação das mudanças referentes ao regime de repartição seria usada para financiar a transição. Isto, porém, não faz sentido.

Lembremos que a tal economia não significa que haverá redução de R$ 1 trilhão nos gastos previdenciários em relação ao que existe hoje, mas sim com relação à trajetória de gastos que se materializaria nos próximos 10 anos caso nenhuma reforma seja aprovada. A memória de cálculo destes números não está disponível, mas acredito ser possível ilustrar este ponto de maneira relativamente simples.

Na apresentação da reforma, o governo indicou que trabalha com a projeção de déficit de R$ 351 bilhões para este ano, notando que, ao contrário do exposto acima, aqui tratamos de uma versão mais ampla da previdência. Assim, as contribuições para o INSS (ou RGPS) chegariam a R$ 419 bilhões em 2019, enquanto as contribuições do funcionalismo (civil e militar) atingiriam R$ 39 bilhões, ou seja, R$ 458 bilhões no total.

Por outro lado, o pagamento de benefícios do RGPS chegaria a R$ 637 bilhões, enquanto o funcionalismo responderia por R$ 113 bilhões, totalizando R$ 750 bilhões. A este montante somamos R$ 59 bilhões referentes ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que também é objeto da reforma, atingindo, pois, R$ 809 bilhões. Neste caso, o déficit (incluso o BPC) ficaria em R$ 351 bilhões em 2019.

Congelemos, como exercício, estes valores para os próximos 10 anos, ou seja, falamos de receitas de R$ 4,58 trilhões no período (a preços de hoje) e despesas de R$ 8,09 trilhões e, portanto, um déficit de R$ 3,51 trilhões (ver tabela abaixo)

Caso apliquemos aos resultados acima os valores projetados para a redução de gastos no mesmo horizonte de 10 anos (de 2020 a 2029), ignorando as mudanças nas contribuições (seu efeito líquido é praticamente zero de acordo com os números divulgados pelo governo), teríamos uma redução de R$ 1,163 trilhão, mas o sistema continuaria a registrar déficit no período, no caso R$ 2,35 trilhões.

Em outras palavras, mesmo com a reforma, o regime ainda apresentaria déficits e, portanto, não ajudaria a contribuir para a redução do déficit da transição caso, simultaneamente à reforma da repartição, fôssemos implantar o regime de capitalização.

É bem verdade que neste cenário supusemos que tudo permanecesse congelado por 10 anos, replicando os resultados esperados para 2019, mas sabemos que não se trata do caso mais provável. Na ausência dos números oficiais projetados para o período fizemos um conjunto de hipóteses.

Em primeiro lugar notamos que a receita de contribuições (a preços de hoje) por emprego com carteira assinada tem ficado relativamente estável nos últimos anos, pouco inferior a R$ 11 mil/ano por emprego com carteira assinada. Notamos também (no caso com menor precisão) que esta modalidade de emprego (em que peses os últimos anos) se move no mesmo sentido, mas com menor intensidade que o PIB. Assim, supomos que a receita de contribuições cresça ao redor de 2% ao ano (nossa conclusão independe, em larga medida, desta hipótese).

No lado das despesas supusemos que o número de aposentados cresça ao ritmo de 2,3% ao ano, próximo ao observado na média dos últimos 3 anos, isto é, um ritmo algo inferior ao observado em anos anteriores (na casa de 3,5% ao ano), uma hipótese conservadora. Da mesma forma, presumimos que os recipientes de benefícios assistenciais cresçam ao passo de 2,6%, também a média dos últimos 3 anos, e também inferior ao ritmo registrado há alguns anos (quando ultrapassou 6%). Quanto ao funcionalismo, na falta de dados, supusemos manutenção do número de aposentados e pensionistas pouco superior a 1,1 milhão.

Por fim, mantivemos os valores dos benefícios per capita (por categoria, ou seja, RGPS, RPPS e BPC), indicando a ausência de ganhos reais para aposentadorias e pensões.

Com base nestes pressupostos calculamos um déficit pouco inferior a R$ 4 trilhões para os próximos anos, mesmo com o aumento das contribuições, como mostrado na tabela abaixo.

Neste caso, o efeito da reforma reduziria o déficit para R$ 2,8 trilhões, ainda superior ao que seria registrado no cenário de congelamento. De qualquer forma, mesmo com a reforma, teríamos ainda déficits nos próximos 10 anos, de sorte que a contribuição para a transição seguiria negativa.

Vale dizer, se o ministro da Economia espera que seu projeto de reforma abra espaço fiscal para a adoção de um regime de capitalização, é melhor não prender a respiração no aguardo.

Concretamente, se não for o caso de abandonar a ideia, talvez o melhor seja mesmo explicitar que não se trata de uma transição cold turkey, mas sim alguma coisa diferente, como a versão complementar de Paulo Tafner, ou mesmo uma versão de capitalização nocional, da qual prometo tratar em mais à frente.

De uma forma ou de outra, faltou uma lição de casa mais bem-feita e as consequências, inclusive para o futuro dos demais itens da reforma, podem ser para lá de negativas.

Fonte: A Mão Visível

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Alexandre Schwartsman