Em coluna neste espaço na sexta-feira (22), Nelson Barbosa, meu colega do Ibre e ex-ministro da Fazenda da presidente Dilma, argumentou que “já passou da hora de os líderes e intelectuais “demo-tucano-novos” fazerem autocrítica em relação ao que patrocinaram desde 2016”.
A vida é mais complexa do que duas turmas se digladiando. Houve os que defenderam o impedimento de Dilma e não votaram em Bolsonaro. Houve os que não defenderam o impedimento de Dilma e votaram em Bolsonaro e houve ainda os que, sem serem petistas, votaram em Haddad por terem medo de tendências autoritárias de Bolsonaro. Há vários posicionamentos. Todos legitimamente democráticos.
Segundo Nelson, a esquerda já está “na autocrítica da autocrítica. Para quem duvida, recomendo participar de alguma reunião interna do PT”.
Há uma característica que sempre achei curiosa nas pessoas que se dizem de esquerda ou pertencentes ao “campo democrático e progressista”.
Em geral são pessoas que têm a certeza de que representam o bem. São pessoas que “têm lado”. E, evidentemente, quem pensa diferente delas está no lado errado: o lado dos banqueiros, do capitalismo e do imperialismo, ou algo do gênero.
Essa certeza de estar do lado do bem gera certa assimetria na forma como elas olham a si e aos outros.
Para os petistas, as reuniões do partido são suficientes como instrumento de autocrítica.
No entanto, demanda-se, com a maior naturalidade, que a “direita”, isto é, a turma do mal, faça autocrítica pública. Nelson nem notou que o que ele demanda da turma do “mal” ele não demanda da turma dele.
Há inúmeros temas que deveriam ser objeto de autocrítica do PT. A decisão de Lula de abortar o ajuste fiscal estrutural de 2005, que Palocci costurava com a oposição, foi correta ou não? A mudança do marco regulatório do petróleo surtiu os resultados almejados? As desonerações funcionaram? Os R$ 500 bilhões de recursos que foram transferidos do Tesouro Nacional para o BNDES geraram retorno positivo?
Funcionou a tentativa de aplicar a teoria de juro múltiplo de equilíbrio e forçar, portanto, o Banco Central baixar as taxas de juros quando as condições de mercado não permitiam? Funcionou congelar os preços dos combustíveis para combater a inflação?
Poderia elaborar se foi boa a opção de fazer uma campanha demonizando os adversários, pois eles iriam promover um ajuste fiscal? Ou ainda se foi positivo destruir a estabilidade fiscal e nossas instituições fiscais, entre 2012 e 2014, para reeleger Dilma?
Há o capítulo das fake news. Colocar comida sendo retirada da mesa para assustar o eleitor é ou não é fake news? O que João Santana fez com Marina Silva foi fake?
E o comportamento da própria bancada petista, que não apoiou o ajuste fiscal de Joaquim Levy? Não deveria ser objeto de autocrítica?
Podemos voltar um pouco mais no tempo. Há algum documento petista fazendo autocrítica por terem votado contra: o Plano Real; o Fundef; a Lei de Responsabilidade Fiscal; e a renegociação das dívidas dos estados com a União?
Há algum reconhecimento do PT de que os tucanos ao longo de todo o mandato de Lula contribuíram para aprovar inúmeras medidas que atendiam ao interesse comum?
Finalmente, há algum documento petista criticando a crise humanitária em curso na Venezuela (15% da população já emigrou)? Vale lembrar que os criminosos de lá teoricamente pertencem ao “campo democrático e progressista”.
Há muito autocrítica para o PT fazer antes de apontar o dedo para outros governos.
Fonte: Folha de São Paulo, 24/11/2019
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