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2008, o ano que não terminou

Onze anos depois da quebra do Lehman Brothers, e dez anos depois da recessão global de 2009, a economia mundial ainda parece estar distante de uma plena normalização e do retorno a padrões observados anteriormente, o que pode até configurar uma ruptura permanente. As diferenças entre os períodos pré e pós recessão são mais intensas e evidentes no que se refere a taxas de inflação e de juros.

Se considerarmos taxas de inflação para os consumidores, nos EUA, Alemanha, França, Japão e China, a média caiu de 2,8% ao ano, entre 1987 e 2007, para 1,5%, entre 2010 e 2019. As taxas de juros de curto prazo (um ano), mais sensíveis à política monetária, tiveram redução média de 3,9% para 1,2% ao ano, e estão próximas de zero no Japão e na Europa. Mas a descontinuidade mais intensa se refere a taxas mais longas, de 10 anos, cuja média, para essas economias, saiu de 4,8% para apenas 1,8% ao ano. As quedas das taxas de juros nominais acabaram sendo mais intensas, em linhas gerais, do que a redução da inflação, de modo que as taxas de juros reais (ex-post) também caíram, de 1,1% para -0,2% no curto prazo, e de 2% para 0,4% no horizonte de 10 anos.

A queda das taxas de juros contribuiu para uma forte apreciação dos ativos de risco, mas também para uma vigorosa recuperação do emprego. Considerando o pior momento, que em diversos países ocorreu no segundo semestre de 2009, a taxa média de desemprego nos países acima caiu de 7,8% para 4,7% recentemente, e está abaixo de 4% nos EUA, Alemanha, Japão e China. Mesmo na área do euro, onde o mercado de trabalho apresenta maior rigidez institucional, e onde economias periféricas passaram por severas crises, a taxa de desemprego caiu de 10,3% para 7,5%.

A política monetária funcionou, mas os atuais patamares de taxas de inflação e juros indicam que não há grande margem para um novo período de ativismo, caso este se mostre necessário. Como vêm alertando proeminentes banqueiros e ex-banqueiros centrais, como Mario Draghi, a política fiscal deve assumir um grau de protagonismo maior no combate à eventuais recaídas recessivas. Ocorre que tal protagonismo é algo que não está ao alcance de todas as economias.

Os EUA, por deterem o “privilégio exorbitante” – nas palavras do ex-presidente e ex-ministro das finanças francês Valéry Giscard d’Estaing – de imprimir a moeda de reserva global, provavelmente podem utilizar a política fiscal, idealmente sob a forma de investimentos em infraestrutura, para combater uma futura recessão, apesar da sua razão dívida/PIB elevada (cerca de 108% para o governo geral). Outro grande devedor, o Japão, com razão dívida PIB de 200% talvez tenha espaço também, dada a magnitude da poupança privada – o Japão tem um superávit em conta corrente equivalente a 4% do PIB – embora o desenho específico de um eventual pacote de estímulo seja complexo.

Na Europa, a Alemanha, com dívida pública pouco acima de 60% do PIB, e superávit em conta corrente equivalente a quase 8% do PIB, a expansão fiscal deveria ser incontroversa, mas as principais forças políticas do país parecem ainda relutantes em utilizar tais medidas – em particular porque a taxa de desemprego ainda segue bem baixa. Já no contexto da China, há espaço para estímulo fiscal, diante da perspectiva de mudança estrutural para uma economia voltada para o consumo – idealmente, segundo o FMI, com medidas que também combatam a desigualdade e promovam sustentabilidade.

Em todos os casos, vale observar que a política monetária, pela sua flexibilidade no tempo e facilidade de reversão, segue sendo um instrumento superior de política de demanda. O debate atual sobre retomar o ativismo fiscal deriva dos patamares reduzidos de inflação e taxa de juros.

No cenário em que uma intensificação da desaceleração global venha a ser combatida, em algumas das principais economias, primariamente por meio da expansão fiscal, os efeitos multiplicadores internacionais tendem a ser mais limitados do que quando predomina a política monetária, pois o gasto público tende a ser mais concentrado em itens não-comercializáveis, se comparado com os dispêndios privados.

O caso brasileiro é de certa forma inverso ao que se observou nas economias acima citadas. Por aqui, a recessão levou o governo a exaurir as possibilidades do expansionismo fiscal (e para-fiscal) e abriu o espaço para maior ativismo monetário. Com uma razão dívida/PIB que se aproxima de 80% (era cerca de 52% em 2013), déficits primários acumulados de 9% do PIB desde 2014 (e sem perspectiva de atingir um superávit antes de 2022), iniciativas anacrônicas de relaxamento fiscal apenas contribuiriam para elevar o custo de financiamento da dívida e a estrutura de taxas de juros como um todo.

O teto de gastos apenas veio tentar disciplinar um ajuste fiscal imposto pela elevação da dívida. Sua implementação suscita um necessário, e tardio, debate sobre os custos da máquina pública e as dificuldades administrativas do governo. De resto, e não menos importante, abre espaço para que o Banco Central, com responsabilidade, explore patamares inéditos de taxas de juros. Por aqui, a bola ainda está com as autoridades monetárias.

Fonte: Valor, 26/11/2019

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita