Ex-diretor do BC diz que há trajetórias fiscais “plausíveis” que tornam irrealista manutenção da Selic em 2%
O teto de gastos é o que tem proporcionado credibilidade à promessa do país de um ajuste gradual das contas públicas, embora seja “demonizado em alguns círculos”, diz o economista Eduardo Loyo. Para o ex-diretor do Banco Central (BC), deixar de cumpri-lo seria uma “declaração expressa” da “falta de disposição para fazer a consolidação fiscal gradual que o teto pressupõe”, pouco importando dizer que se trata de “flexibilizar, contornar, suspender, excepcionalizar ou romper” o mecanismo que limita o crescimento das despesas da União. “É inevitável que essa constatação se reflita nos preços dos ativos”, afirma Loyo, sócio e membro do conselho de administração do BTG Pactual.
Num cenário de dúvidas quanto ao futuro das contas públicas, o comportamento de ativos como os juros futuros e o câmbio leva a “uma piora das condições financeiras das quais a economia real depende”, observa ele. “O crédito imobiliário, por exemplo, expandiu-se graças ao achatamento da estrutura a termo de taxas de juros, e tende a sair prejudicado se a estrutura a termo empina novamente”, diz Loyo. “Caso a percepção de risco se acentue, tendem a piorar as condições macroeconômicas de forma mais ampla, pois os ânimos de consumidores e investidores ficam mais deprimidos diante do temor de instabilidade.”
O nível historicamente baixo dos juros básicos também entra em risco num quadro de incertezas sobre as contas públicas, segundo Loyo. “Vai depender da intensidade que essas incertezas tiverem, ou do quão desfavorável for seu eventual desfecho. Há trajetórias fiscais eminentemente plausíveis, a julgar pelas discussões que emanam de Brasília, que tornariam a manutenção da Selic a 2% totalmente irrealista”, avalia ele.
E qual deve ser o ritmo do ajuste fiscal? “Espaço para consolidação gradual depende, em primeiríssimo lugar, da confiança de que ela será implementada”, diz Loyo, citando o caso da Argentina. Segundo ele, nos últimos anos, o país vizinho “mostrou no que dá um sistema baseado em promessas cada vez menos críveis de consolidação fiscal gradual”. O ponto é que “quem não tem credibilidade suficiente para se manter à base de promessas de virtude no futuro acaba tendo que se sacrificar mais no presente”, diz Loyo, para quem “truques contábeis, destinados a cumprir a letra embora descumprindo o espírito do teto, também são altamente contraproducentes: não enganam ninguém e só chamam atenção para a resistência sobre-humana das nossas instituições públicas à consolidação fiscal”.
Ele acrescenta ainda que, “embora haja uma piora generalizada dos indicadores fiscais pelo mundo”, é preciso lembrar que o ponto de partida do país “já era excepcionalmente frágil para um emergente, em métricas como dívida pública, carga tributária e gastos governamentais como proporção do PIB”.
Com doutorado pela Universidade de Princeton, Loyo foi diretor de Estudos Especiais do BC de 2003 a 2005 e diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2005 a 2007. Desde então, está no BTG Pactual. Veja a seguir a íntegra da entrevista, realizada por e-mail.
Valor: Os juros globais deverão ficar em níveis baixos por muito tempo. Quais os efeitos dessa política monetária frouxa nos países avançados para a economia global e para emergentes como o Brasil?
Eduardo Loyo: É uma enorme ajuda, pelo espaço fiscal que proporciona aos governos dos próprios países avançados para poderem arcar com as despesas envolvidas no enfrentamento da pandemia, por facilitar, indiretamente, o financiamento externo dos países emergentes, e por permitir que estes também mantenham condições monetárias mais frouxas e obtenham daí alguma folga fiscal extra. Mas, em particular para os emergentes, não é indulgência plenária. Não significa que as restrições orçamentárias foram abolidas.
“Os indicadores fiscais alheios não nos tornaram inconspícuos em meio à multidão”
Valor: O FMI vê a recuperação global como “longa, desigual e incerta”. Grande parceiro comercial do Brasil, a China deve ter um desempenho melhor do que a média mundial. Em que medida isso ajudará a recuperação da economia brasileira a ter mais gás?
Loyo: Dar algum gás, sempre dá. Mas também há desigualdades no ritmo de recuperação entre setores, e os que mais sofrem com a pandemia, como serviços, não são muito socorridos por essa demanda externa. Sendo assim, muito gás vindo de fora tende a aumentar os desbalanceamentos setoriais.
Valor: A economia brasileira vai ter uma contração expressiva em 2020, mas o tombo do PIB não chegará a 8% a 9%, como alguns analistas estimavam há alguns meses. A diferença do desempenho se deve essencialmente ao efeito do auxílio emergencial ou há outros fatores que explicam a retomada mais forte que a esperada até aqui?
Loyo: Pois é: hoje nosso time de economistas prevê contração de 5% neste ano, e expansão de 3% em 2021, e o consenso de mercado está bem perto disso. O auxílio emergencial, maior, mais abrangente e mais duradouro do que se imaginava inicialmente, foi o grande destaque nessa história. Mas houve também boas surpresas com a capacidade da economia de seguir produzindo bens e serviços a despeito do distanciamento social, evitando uma espécie de círculo vicioso implosivo. As medidas do Banco Central para manter a funcionalidade do mercado de crédito também ajudaram bastante a evitar um cenário pior.
Valor: O que puxará a economia em 2021, com o fim do auxílio emergencial e um cenário delicado para o mercado de trabalho?
Loyo: A premissa é que a economia puxará a si mesma, sob condições monetárias ainda bastante estimulativas. O auxílio emergencial terá proporcionado apoio social e suporte macroeconômico quando ele foi mais necessário, mas, a partir de determinado momento, a tendência de recuperação da economia se retroalimenta e se torna autossustentada. Se, do ponto de vista de gestão da demanda agregada, dezembro é o momento ideal para descontinuar o auxílio e em que medida o prosseguimento da recuperação dependerá de algum programa de transferência de renda que o suceda, é difícil afirmar com precisão. Talvez devêssemos ter distribuído melhor no tempo a concessão do auxílio, mas o ciclo de recuperação não pode depender dele até estar 100% completado.
Valor: A dívida bruta deve atingir 95% do PIB ou mais e o déficit primário superar 10% do PIB neste ano. Isso indica que o ajuste fiscal terá que ser forte em 2021 ou há espaço para uma consolidação gradual, já que a piora das contas públicas é generalizada em países desenvolvidos e emergentes para combater os efeitos da pandemia?
Loyo: Espaço para consolidação gradual depende, em primeiríssimo lugar, da confiança de que ela será implementada. Nos últimos anos, a Argentina nos mostrou no que dá um sistema baseado em promessas cada vez menos críveis de consolidação fiscal gradual. Quem não tem credibilidade suficiente para se manter à base de promessas de virtude no futuro acaba tendo que se sacrificar mais no presente. A nosso respeito, embora haja uma piora generalizada dos indicadores fiscais pelo mundo, precisamos lembrar que nosso ponto de partida já era excepcionalmente frágil para um emergente, em métricas como dívida pública, carga tributária e gastos governamentais como proporção do PIB. E nossa expansão fiscal em resposta à pandemia também foi enorme na comparação internacional. Os indicadores fiscais alheios não nos tornaram inconspícuos em meio à multidão.
Valor: Um encolhimento do déficit primário para a casa de 2% a 3% do PIB no ano que vem não pode dar um tranco na atividade, num cenário em que as perspectivas para o consumo das famílias e o investimento não são das mais animadoras?
Loyo: Como já mencionei, é difícil precisar a trajetória ótima de introdução e retirada de estímulos fiscais tão sem precedentes como os praticados em resposta à pandemia, ela própria um choque macroeconômico sem precedentes na nossa era. Mas, supondo que as condições para o funcionamento da economia serão muito menos desfavoráveis em 2021 do que foram em 2020, em particular no segundo trimestre deste ano, é razoável concluir, no mínimo, que os estímulos fiscais de que ela precisará no ano que vem serão muito mais moderados.
Valor: Há uma intensa discussão sobre o teto de gastos. Como o sr. avalia o mecanismo? É uma âncora fiscal adequada para uma economia como a brasileira?
Loyo: O teto é demonizado em alguns círculos, mas é o mecanismo que vem proporcionando credibilidade à nossa promessa de consolidação fiscal gradual, dispensando o país de um ajuste mais draconiano e imediato, e possibilitando inclusive uma enorme expansão fiscal em resposta à pandemia. Não parece um mecanismo inadequado a um país cujo nível de gastos públicos e carga tributária já destoa tanto do conjunto dos emergentes, e onde esses indicadores sofrem elevação há décadas. É verdade que cria sérias tensões na alocação dos recursos que disponibiliza, mas isso não é um defeito: é exatamente essa a sua lógica.
“Caso a percepção de risco se acentue, tendem a piorar as condições macroeconômicas de forma mais ampla”
Valor: Como o teto de gastos vai aumentar apenas 2,13% em 2021, será necessário cortar bastante as despesas discricionárias no ano que vem. Há quem defenda flexibilizá-lo, seja para aumentar despesas com investimento, seja para financiar um programa de transferência de renda mais amplo. Há espaço para alguma flexibilização do teto ou isso teria consequências muito negativas sobre os preços de ativos brasileiros como o câmbio, os juros futuros e o risco país?
Loyo: Chamemos de flexibilizar, contornar, suspender, excepcionalizar ou romper, pouco importa: a recusa do país a viver dentro desses limites autoimpostos seria uma declaração expressa de sua falta de disposição para fazer a consolidação fiscal gradual que o teto pressupõe. É inevitável que essa constatação se reflita nos preços dos ativos. Argumenta-se que a pandemia fez o país despertar para demandas que andavam ignoradas, como a proteção contra a volatilidade de renda à qual estão expostos os trabalhadores informais, e que o teto não contemplava tais lacunas. Mas, como muitos já demonstraram, há programas ineficientes ou anacrônicos de onde os recursos para essas novas demandas podem ser redirecionados. O que não podemos é seguir nos deparando com novas demandas, como é natural que aconteça, e nunca questionando se programas em vigor continuam fazendo sentido, se é que jamais fizeram. Assim a despesa pública e a carga tributária, ambas já muito elevadas, não cessarão de aumentar.
Valor: Ativos brasileiros como os contratos de juros futuros e o câmbio estão sob pressão, indicando a percepção de aumento do risco fiscal. Quais as consequências para a economia brasileira do comportamento desses ativos?
Loyo: Em primeiro lugar, uma piora das condições financeiras das quais a economia real depende. O crédito imobiliário, por exemplo, expandiu-se graças ao achatamento da estrutura a termo de taxas de juros, e tende a sair prejudicado se a estrutura a termo empina novamente. Caso a percepção de risco se acentue, tendem a piorar as condições macroeconômicas de forma mais ampla, pois os ânimos de consumidores e investidores ficam mais deprimidos diante do temor de instabilidade. Como em macroeconomia tudo depende de tudo mais, quando o sistema começa a se desorganizar, é preciso trabalhar para que não degringole.
Valor: Depois da experiência do auxílio emergencial, há uma avaliação de muitos analistas de que é necessário um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família. O sr. concorda com essa visão? É possível financiá-lo sem romper o teto de gastos?
Loyo: Concordo que devemos criar uma rede de proteção social para os informais e que podemos expandir e aprimorar as transferências condicionais de renda no molde do Bolsa Família. Mas Vinícius Botelho, Marcos Mendes e Fernando Veloso já mostraram como é possível fazer isso de maneira eficaz e sem romper o teto de gastos. O estudo deles e de seus coautores está disponível no site do CDPP [Centro de Debate de Políticas Públicas]. A proposta defende a fusão do Bolsa Família com o abono salarial, o seguro defeso e o salário família].
Valor: O governo discutiu usar parte dos recursos para pagamento dos precatórios e do Fundeb para financiar o Renda Cidadã. Isso indica a falta de compromisso do governo com o teto e com o ajuste das contas públicas?
Loyo: O caso dos precatórios foi mais grave, pois significaria um descumprimento de obrigações de pagamento por parte da União. Mas meros truques contábeis, destinados a cumprir a letra embora descumprindo o espírito do teto dos gastos, também são altamente contraproducentes: não enganam ninguém e só chamam atenção para a resistência sobre-humana das nossas instituições públicas à consolidação fiscal. Houve relatos recentes, por exemplo, de que as empresas passariam a pagar elas próprias o auxílio-doença, e se ressarciriam abatendo esses valores de suas contribuições previdenciárias. Isso eliminaria uma despesa primária, abrindo espaço para que outra ocupasse seu lugar dentro do teto, mas a despesa eliminada ressurgiria integralmente como renúncia fiscal, que não pressiona o teto mas é equivalente do ponto de vista do resultado final. Como imaginar que nossa multidão de analistas macroeconômicos não se daria conta de semelhante prestidigitação?
Valor: O governo enviou uma reforma administrativa que não afeta os atuais servidores. A agenda de reformas para controlar gastos obrigatórias é tímida demais?
Loyo: Até agora, é sim. Em particular, na reforma administrativa, não me parece fazer sentido que as regras de progressão de carreira só passem a valer para novos concursados. Não se trata de reverter promoções já feitas, mas de mudar as regras para promoções futuras, tanto para os novos quanto para os atuais servidores.
Valor: Em que medida a Selic a 2% ao ano está em risco, dadas as incertezas em relação às contas públicas no ano que vem?
Loyo: Vai depender da intensidade que essas incertezas tiverem, ou do quão desfavorável for seu eventual desfecho. Há trajetórias fiscais eminentemente plausíveis, a julgar pelas discussões que emanam de Brasília, que tornariam a manutenção da Selic a 2% totalmente irrealista.
Valor: O comportamento dos juros futuros indica que o BC terá que elevar os juros básicos mais cedo do que o grau de ociosidade da economia sugere?
Loyo: Indica que o mercado percebe a existência desse risco, o que não quer dizer que ele precise se materializar, ou sequer que o mercado esteja certo em sua avaliação. Na minha opinião pessoal, o risco existe sim, muito vinculado às questões fiscais e seus potenciais desdobramentos cambiais. Mas, secundariamente, há também a pressões inflacionárias associadas à intensa realocação da demanda entre setores da economia, no Brasil e no mundo, em favor de várias classes de bens tangíveis e em detrimento de determinados tipos de serviços. Não é incomum que mudanças de preços relativos, dependendo de sua extensão, deixem um rescaldo inflacionário a tratar, mesmo em economias retraídas.
Valor: Como tem funcionado o forward guidance [a política de prescrição futura do BC]? As incertezas fiscais têm reduzido a sua eficácia?
Loyo: Nosso forward guidance não me soa tanto como uma promessa do Banco Central de, no futuro, ser significativamente mais “dovish” do que sua função de reação habitual prescreveria – que é o significado estrito do termo. Soa mais como uma declaração expressa, da parte da autoridade monetária, de que crê que as condições macroeconômicas futuras serão compatíveis com o patamar atual da taxa Selic, mesmo sem se desviar grande coisa da aplicação tradicional do regime de metas de inflação. À medida que as incertezas fiscais minem essa crença, a confiança na estabilidade sinalizada para a taxa Selic já fica abalada. Além do mais, o aumento dos prêmios de risco, inclusive de crédito, que o mercado adiciona à trajetória esperada da Selic para formar os juros longos contribui para desfazer o efeito que o forward guidance pretende obter, que é o achatamento da estrutura a termo. Ou seja: em cima de queda, coice.
Fonte: Valor Econômico, por Sérgio Lamucci
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.