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Overkill global?

Valor (publicado em 02/12/2021)

Apesar do susto e preocupação ocasionados pelo surgimento da variante ômicron, o cenário central ainda é de continuidade da recuperação global em 2022, mas a um ritmo mais lento. A equipe do Itaú espera um crescimento global de 6% em 2021, muito influenciado pela normalização, ainda que desigual e parcial, da atividade econômica – processo que, a rigor, teve início em meados de 2020, contribuindo para um carrego estatístico de 4.2% para o PIB global. As perspectivas para 2022 são menos favoráveis, o PIB global deve ter crescimento de 3,9%, com a erosão (e início da reversão) dos efeitos dos estímulos injetados durante a fase mais crítica da pandemia, e um carrego de 1.8%, a ser herdado de 2021.

As respostas de política econômica ao choque da pandemia foram intensas e sincronizadas, ainda que de forma não coordenada. As economias do G-20 adotaram fortes estímulos fiscais, independente das condições precedentes, e também monetários, no primeiro semestre de 2020. O impulso fiscal global deve ter atingido algo próximo a 4,8%[1] do PIB, consideravelmente maior do que na crise financeira de 2008-2009 (cerca de 2% do PIB).

Em tese, os gestores econômicos devem levar em consideração a ação de suas contrapartes em seu processo decisório, internalizando plenamente o efeito esperado das decisões de política adotadas em outros países. Na prática, as decisões são geralmente voltadas para circunstâncias nacionais, mesmo porque as autoridades econômicas devem prestar contas para públicos locais, não globais. Consequentemente, o que faz total sentido do ponto de vista nacional, quando agregado, pode se mostrar excessivo em escala global, e isso provavelmente ocorreu em 2020.

Ainda que a pandemia não tenha sido plenamente controlada, o principal problema econômico do momento é a inflação. A crença no caráter transitório da inflação tem sido desafiada pelos dados: 6% na Alemanha, 6,2% nos EUA, 4,2% no Reino Unido, em todos os casos, recordes de vários anos. A população percebe a erosão do poder de compra e, a julgar pelas demandas por compensação inflacionária, como evidenciado pelo aumento das greves nos EUA, começa a buscar ação direta para se proteger do aumento do custo de vida, sem contar com a reação dos bancos centrais. Entre setembro e novembro, 13 mil trabalhadores entraram em greve nos EUA, ante 4-5 mil, em média, em 2017-2020, para os mesmos meses – números baixos, se comparados com a população empregada total, mas a mudança de comportamento chama a atenção. Nesse contexto, após a maré expansionista observada em 2020, em 2021 as políticas econômicas estão mudando de orientação.

Entre março e outubro de 2020, os principais bancos centrais de economias avançadas e emergentes cortaram as taxas de política monetária 62 vezes. Alguns dos mais importantes bancos centrais, como o Fed e o BCE, complementaram o uso dos instrumentos tradicionais com compras de ativos. Em igual período de 2021, o mesmo conjunto de bancos centrais implementou 32 elevações de taxas de política monetária, e o Fed já anunciou que irá reduzir as compras de ativos nos próximos meses, com vistas a começar o ajuste da taxa básica de juros no primeiro semestre de 2022.

Novamente, autoridades monetárias, que vêm sendo chamadas pelo público e pelas lideranças políticas de seus países ou áreas, a combater a inflação, devem em tese internalizar os efeitos do aperto global, mas, na prática, condições locais tendem, muito naturalmente, a pesar mais. Assim sendo, da mesma forma que parece ter ocorrido um excesso de estímulo monetário (dado que a política fiscal também foi muito expansionista em 2020), pode ocorrer um excesso de ajuste (overkill, no jargão dos mercados) em escala global, na saída (esperada) da pandemia.

Apesar de existir, o risco de um overkill de ajuste em escala global parece, por ora, limitado. Isto porque, em linhas gerais, ao contrário do período que se seguiu à grande crise de 2008-2009, a política fiscal não deve ter uma virada contracionista no curto prazo. Em parte, por conta do aprendizado desde a crise anterior, que induz as autoridades fiscais de economias avançadas, com boa classificação de risco e percepção de ter fianças públicas sólidas, a explorar os limites da tolerância do público investidor, que não tem exigido retornos maiores para comprar títulos públicos.

A provável persistência das posturas fiscais expansionistas deve decorrer, também, das crescentes demandas sociais, nos EUA e Europa, por políticas econômicas mais inclusivas e que combatam a desigualdade. Tampouco se espera um ajuste fiscal significativo na China, que está lidando com uma série de complexos temas setoriais (imobiliário e de tecnologia), em um momento politicamente sensível. A política monetária encontrará, assim, um contrapeso relativamente persistente na política fiscal.

Se existe risco de overkill, deve ser limitado em escala global, e mais importante nas economias emergentes, com histórico de finanças públicas precárias e classificação de risco baixa, onde a política fiscal foi, corretamente, utilizada para mitigar o impacto social da pandemia, mas onde o alto endividamento pode suscitar preocupação sobre a dinâmica da dívida. Nessas economias, as perspectivas de postergar o inevitável ajuste fiscal são mais limitadas, e arriscadas, algo que deve ser levado em conta na calibragem do ajuste da política monetária.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/overkill-global.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita