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O noticiário sobre o Banco Central do Brasil (BC) tende a se concentrar na cobertura da política monetária. O ritual do Copom, em especial, atrai atenção dos mercados, empresariado e da mídia. Mas nem só de política monetária vive o BC. O nosso banco central vem implementando uma revolução quase que silenciosa no sistema de pagamentos e está, em certos aspectos, na vanguarda em relação aos seus congêneres. Os ciclos de política monetária vêm e vão, mas as reformas do sistema de pagamentos vieram para ficar e podem ser aprofundadas.

A reforma mais emblemática, o lançamento do Pix, em plena pandemia, foi um grande sucesso. Em apenas um ano, cerca de 15% das transações (7% do volume) de pagamentos foram realizadas por esse mecanismo, que aumenta a inclusão financeira e reduz o custo de transações dentro da economia. Os bancos foram engajados nesse processo, sob a liderança do BC, que atua como regulador e fornecedor da infraestrutura básica. O lançamento do Pix é visto como caso de sucesso pelo BIS, instituição que reúne os bancos centrais do mundo – reconhecimento, infelizmente, raro de política pública brasileira, sendo mais uma prova da excelência do nosso BC.

BCs parecem estar tentando assegurar que a emissão de moedas digitais siga sob controle do setor público

Depois do sucesso do Pix, as autoridades monetárias contemplam a adoção do Real Digital, versão eletrônica do Real, que se somaria ao papel moeda e aos depósitos dos bancos no próprio BC – como indicado pelo documento Diretrizes do Real Digital, de maio de 2021. Embora ainda sem data definida para começar a funcionar, o Real Digital deve passar a ser emitido até o final de 2024.

A discussão do Real Digital mostra que o BC segue sintonizado com os principais avanços tecnológicos e trabalhando para aprimorar ainda mais o sistema de pagamentos, bem como tornar o sistema financeiro mais inclusivo e aberto às inovações. O BC não está sozinho nessa iniciativa. O Fed publicou um estudo sobre o tema em janeiro deste ano, e outros bancos centrais vão na mesma linha.

O estudo do BC americano apresenta alguns atributos desejáveis para o dólar digital, que, a princípio, são de aplicabilidade universal: deve assegurar privacidade, ser intermediado, transferível e permitir monitoramento. A moeda digital deve ser desenhada de forma a promover a maior privacidade possível, sem prejuízo da transparência necessária para permitir o combate à criminalidade. O Fed (assim como o BC), não possui autorização legal para operar com pessoas físicas ou empresas não financeiras. Assim, o dólar digital terá que ser intermediado, por meio de contas bancárias ou carteiras digitais.

Pode-se argumentar, a propósito, que atribuir aos bancos centrais a responsabilidade pelo atendimento direto a pessoas físicas implicaria uma expansão exagerada do tamanho e relevância das instituições, ampliando o escopo de atuação do Estado, em detrimento do setor privado, e gerando risco de desintermediação. Para funcionar como moeda, o dólar digital deve ser livremente transferível entre agentes econômicos. Finalmente, o estudo do BC americano sugere que o dólar digital deve oferecer as mesmas possibilidades de controle e supervisão que as moedas escriturais emitidas pelos bancos.

Entre os principais bancos centrais, o mais avançado no lançamento de uma moeda digital é o chinês. Um projeto-piloto de yuan digital teve início em abril de 2020 e, hoje, já está em teste em mais de 30 cidades. Os objetivos da iniciativa são atender a demanda por numerário em uma economia digital, apoiar a competição, aumentar a segurança e eficiência dos serviços de pagamento e melhorar transferências internacionais. A propósito, transferências internacionais são geralmente menos eficientes, dadas diferenças regulatórias e dificuldades operacionais, do que domésticas e, havendo a necessária padronização, espera-se que a introdução de moedas oficiais digitais tenha impacto especialmente relevante nesse mercado.

Outros bancos centrais lançaram suas moedas digitais com foco em operações de varejo, mediante uma segmentação. No caso de Bahamas, houve a criação do Sand Dollar em outubro de 2020 – indivíduos podem ter uma carteira digital, sem vínculo bancário, com até US$ 500, sem apresentar dados de identificação governamentais; carteiras maiores, até US$ 8 mil só podem ser abertas mediante apresentação de dados de identificação e podem estar vinculadas a contas bancárias. A Nigéria criou o e-Naira, em outubro de 2021, voltado, no momento, apenas para a população bancarizada. Em uma segunda etapa, o programa será estendido aos não-bancarizados, por meio da carteira de identidade nacional. Quanto mais detalhadas as informações de identificação oferecidas, maior será o limite transacional permitido.

Com o avanço tecnológico, em termos de criptografia, capacidade computacional e velocidade de transmissão de informações, é inevitável que moedas digitais venham a surgir. O que os bancos centrais parecem estar tentando, com certa razão, é assegurar que a emissão desses instrumentos siga sob controle do setor público, e voltada para as necessidades da economia como um todo, e não para o atendimento de interesses privados. O desafio, sobre o qual as autoridades estão plenamente conscientes, será administrar as escolhas inerentes à criação da moeda digital.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/real-digital.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita