“Era um cachorro pequeno, de uma raça japonesa. Chamava-se Lulu e dormia na cama do imperador. Em diversas cerimônias, escapava dos joelhos imperiais e ia urinar nos sapatos dos dignatários. Eles estavam proibidos de se mexer, de esboçar um gesto que fosse, ao sentirem os pés molhados. Minha função era andar entre os dignatários, secando os sapatos. Para isso, eu usava um pequeno pano de cetim. Essa foi minha ocupação por dez anos.”
Esse é o parágrafo de abertura do livro “O Imperador”, do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que descreve o reinado de 44 anos de Haile Selassie, o “Escolhido de Deus”, na Etiópia. Ganhei, há mais de 30 anos, o livro de um amigo, que comentou ser o mais impressionante relato do poder absoluto que ele já havia lido.
Em poucas páginas, quase que exclusivamente através de depoimentos de ex-funcionários subalternos do palácio, colhidos logo após o fim do reinado, em 1974, somos apresentados a um país de profundos contrastes, entre uma corte palaciana, para cujas celebrações se faziam vir aviões com iguarias da Europa, e o povo miserável sujeito à fome que chegava a dizimar populações inteiras em regiões mais distantes de Adis Abeba, a capital. Enquanto isso, o Imperador, homem afável e bom orador, viajava o mundo procurando —e muitas vezes conseguindo— difundir uma imagem de líder modernizador.
A invasão da Ucrânia pela Rússia e a figura onipotente de Putin fizeram-me voltar ao livro, agora já na versão traduzida para o português, com o excelente posfácio de Mario Sergio Conti, que observa que o relato pode ser visto não apenas como uma metáfora da Polônia stalinista vivida por Kapuscinski mas também como uma alegoria da subordinação absoluta ao poder pessoal em qualquer situação.
Impressionado com o fato de um único homem decidir promover a primeira invasão em território europeu desde a Segunda Guerra, ignorando os protestos da maior parte dos países, submetendo sua população às graves consequências econômicas das sanções internacionais e espalhando morte e terror no país vizinho, retornei ao exemplo de Haile Selassie, buscando compreender os mecanismos do poder absoluto.
Kapuscinski descreve uma estrutura de poder baseada exclusivamente na proximidade do Imperador, a partir do qual uma série de círculos concêntricos compostos de dignatários estabelecia o grau de prestígio —e o acesso aos recursos do reino— de cada um. A quantidade de audiências com o Imperador, a participação em suas comitivas nas viagens ao exterior, a distância a que se sentavam dele nas ocasiões solenes, todos esses símbolos de poder eram disputados avidamente pelos membros da corte.
O Imperador cuidava para que a posição das pessoas nos círculos fosse alterada periódica e aleatoriamente, de modo a gerar o máximo de dependência e insegurança naqueles à sua volta. Outra preocupação essencial era o controle da informação, ou, melhor ainda, a sua simples supressão. Em um reino de 30 milhões de súditos, imprimiam-se apenas 25 mil exemplares de jornais diariamente.
Novos tempos, novas tecnologias e uma nação infinitamente mais rica exigem de Putin métodos mais elaborados, embora baseados nos mesmos princípios. Seu círculo de poder — os “sloviki” (homens fortes) é bastante restrito e composto em grande parte de companheiros leais, egressos das forças de segurança do país. A lealdade é um elemento essencial e, naturalmente, deve ser entendida como lealdade pessoal ao líder, não a princípios, ou objetivos comuns.
Em que pese o pequeno número de assessores, Putin mantém sua distância e formalismo, através dos usuais símbolos exteriores de poder, como a cadeira que mais lembra um trono, em que costuma se sentar nas reuniões, parcialmente divulgadas pela televisão. Ocasionalmente submete um membro do círculo a uma descompostura pública, como ocorreu recentemente com o diretor do SVR, o serviço de inteligência internacional.
Mais admirável ainda foi a capacidade do ditador de manter na ignorância dos fatos relativos à guerra uma população de quase 150 milhões de habitantes por várias semanas, a ponto de se recusarem a crer
nos relatos dos próprios filhos, feitos a partir de cidades bombardeadas na Ucrânia.
Mas mesmo as ditaduras mais severas encontram limites ao seu poder de censura. O elemento deflagrador da ruína do Império Etíope foi o filme “A Fome Oculta”, exibido em meados de 1973 na televisão inglesa, alternando cenas de Selassie em banquetes com seus cortesãos com imagens de estradas repletas de esqueletos de pessoas mortas por inanição.
Um ano depois, o imperador foi deposto. Não sabemos como evoluirá a ditadura de Putin na Rússia, mas é certo que regimes totalitários, apesar de sua força aparente, são mais instáveis que as democracias, pois
não dispõem de mecanismos para acomodar a contestação.
A incapacidade de reconhecer essa instabilidade provocou recentemente grandes perdas a investidores de fundos internacionais, como relata Robin Brooks, economista do IIF, em um tuíte de 27 de março: “O real valorizou-se 18% neste ano, enquanto o rublo cai 27%. A ironia é que muitos gestores de recursos haviam movido seus investimentos do Brasil para a Rússia, por considerarem a política brasileira como muito bagunçada. Qualquer democracia, por mais bagunçada que seja, é melhor que um regime autoritário ‘arrumadinho’”.
Alheio a esse fato, nosso presidente parece nutrir uma admiração incontida por líderes autoritários. Sua visita recente a Putin, às vésperas da invasão da Ucrânia, provoca desconforto adicional, dada a evidente inclinação russa a interferir em disputas eleitorais internacionais através da manipulação das redes sociais.
Soma-se a isso agora o convite ao herdeiro do trono saudita, Mohammed bin Salman, para visitar nosso país em maio. MBS, como é conhecido, reproduz com esmero a cartilha de Haile Selassie.
Primeiramente, cultiva uma imagem modernizadora ao promover a diversificação da economia e a relativa liberalização de costumes, como a permissão às mulheres par dirigir. Também atemoriza os que o rodeiam, tendo mantido centenas de membros da família real, bilionários e membros do governo prisioneiros em um hotel de luxo, acusados de corrupção, sujeitos a vários tipos de pressão, passando a toda a elite saudita a mensagem de que sua riqueza e privilégios dependem exclusivamente da vontade do príncipe herdeiro.
Finalmente, MBS é apontado em relatório da CIA como tendo aprovado o assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista do Washington Post, em uma demonstração extrema de sua disposição de controlar a imprensa.
A democracia é nossa grande conquista. Será testada no processo eleitoral e é preciso defendê-la.
FOLHA. Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/04/o-imperador.shtml
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