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Reservas, dívida bruta e dívida líquida

Estado de São Paulo


Qual é o conceito correto de dívida pública para aferir o esforço fiscal que garanta a solvência do governo? A resposta é simples: temos de olhar para a dívida bruta que, no conceito brasileiro, está em 74% do PIB. Mas há quem defenda o uso da dívida líquida – a dívida bruta menos as reservas –, que atualmente chega a 55% do PIB. Tais números levariam um incauto a acreditar que a estabilização da dívida líquida exigiria um esforço menor. No entanto, para esterilizar a acumulação das reservas, o Banco Central realizou operações compromissadas pagando a taxa de juros dos títulos públicos, e as reservas rendem muito menos. Há, assim, um “custo de carregamento” das reservas, que leva a um superávit primário necessário para estabilizar a dívida líquida que pode ser maior do que o que estabiliza a dívida bruta.

A aritmética ajuda a esclarecer o problema. Com o PIB crescendo 2% ao ano e a taxa real de juros dos títulos públicos de 5% é necessário um superávit primário de 2,2% do PIB para estabilizar a dívida bruta. Já com uma dívida líquida de 55% do PIB e com as reservas (de 19% do PIB) aplicadas a 1% ao ano, o superávit primário que estabiliza a dívida líquida em relação ao PIB seria de 2,4%. A conta é simples: a) o governo paga juros sobre a dívida bruta, que inclui as compromissadas usadas para esterilizar as reservas; e b) recebe algo como 1% ao ano ao investir as reservas no exterior. Dividindo o “gasto líquido” pela dívida líquida chega-se à taxa de juros implícita da dívida líquida, e em seguida ao superávit de 2,4% do PIB.

A tirania da aritmética destruiu a ilusão de que poderíamos ter uma “solução fácil” para minimizar o esforço fiscal, mas será que a “ativação das reservas” dirigindo-as a estimular o crescimento não levaria ao mesmo resultado? Aqui e ali ouvimos a sugestão de que se as reservas fossem depositadas em um fundo offshore poderíamos financiar os investimentos em infraestrutura. Não tenho dúvidas de que os investimentos em infraestrutura ajudam o crescimento, mas o caminho para chegar a isto não é a “ativação das reservas”, e sim um conjunto de ações que: reduzam o risco regulatório, atraindo concessionários eficientes em leilões competitivos, com o setor privado investindo e o governo fazendo a regulação; e que desenvolvam o mercado de capitais.

Quando as reservas foram acumuladas levaram ao aumento da dívida bruta incluindo as “compromissadas” usadas para esterilizar seus efeitos. Se as reservas forem usadas para investir em infraestrutura ficaremos com a mesma dívida bruta e trocaremos as reservas por investimentos em infraestrutura. Não é preciso ser nenhum gênio para descobrir que isto nada mais é do que o financiamento dos gastos em infraestrutura com dívida pública, caracterizando política fiscal expansionista.

Finalmente, resta a alternativa de reduzir as reservas usando os recursos para abater a dívida pública. Esta é uma trajetória correta, mas tem limitações. As reservas são um “seguro” que ajuda reduzir os efeitos de uma macroeconomia frágil e, infelizmente, o Brasil precisa de um seguro alto. Em artigo anterior usei o exemplo da Austrália, que tem reservas de apenas US$ 50 bilhões, e sem intervir no mercado de câmbio tem uma volatilidade cambial bem menor do que a do Brasil, que intervém intensamente e tem reservas de US$ 370 bilhões. Tal desempenho somente é possível devido à qualidade de suas instituições e de sua política econômica. AAustrália tem uma renda per capita medida em PPP superior às do Reino Unido e União Europeia; e inflações estáveis em torno de 2% ao ano.

No dia em que começarmos a convergir para o comportamento australiano poderemos pensar em reservas menores usando os recursos para reduzir a dívida bruta. Mas para chegar a este ponto temos que manter uma execução competente de políticas econômicas baseadas em diagnósticos corretos, prosseguindo com as reformas, e tendo consciência de que contrariamente à aritmética, no contexto deste problema econômico a ordem dos fatores altera o produto. É necessário primeiro realizar as reformas, para em seguida buscar reservas menores. Se invertermos a ordem dos fatores chegaremos a um produto muito inferior.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

 

Sobre o autor

Affonso Pastore