Estado de São Paulo
O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, e o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, tomaram a iniciativa de se oferecer para conversar com os economistas responsáveis pelos programas econômicos dos principais candidatos a presidente nas eleições de outubro. Mais que o simbolismo do gesto, o convite ao diálogo – e sua aceitação – tem importância que não deve ser subestimada. Nesta quadra difícil da vida nacional, como raras vezes na história recente do país, nunca foi tão importante formar uma certa ideia, mais ou menos compartilhada, sobre onde estamos. Mesmo quando há legítimas divergências sobre como chegamos à situação atual e, por certo, diferença de opinião sobre o que nos reserva o incerto futuro.
Vale relembrar, neste agosto turbulento, um aspecto de experiência da transição de 2002 para 2003, ou seja, de FHC II para o governo que resultasse das urnas de outubro daquele ano. Em agosto, o então presidente convidou para reuniões – separadas – no Palácio do Planalto os quatro principais candidatos à Presidência e seus principais assessores econômicos e políticos. Compareceram às reuniões os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra, Ciro Gomes e Garotinho, com seus assessores de maior confiança. A todos foram explicadas as razões que haviam levado o governo – dadas as então crescentes incertezas sobre o que poderiam vir a ser as políticas de um novo governo a partir de 1/1/2003 – a negociar nos meses de junho a julho um acordo preventivo com o FMI no valor (recorde à época) de US$ 30 bilhões, mais de 80% dos quais estariam disponíveis para o futuro governo. O Congresso já havia então aprovado a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com o superávit primário definido para 2003.
Os encontros transcorreram em clima civilizado e a imprensa registrou devidamente, à época, não apenas a longa entrevista do presidente FHC no mesmo dia (19/8/2002) descrevendo o encontro, como os pronunciamentos dos candidatos no dia e em várias ocasiões subsequentes.
Lula reiterou seu compromisso com palavras claras: “Nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em relação ao PIB, o que poderia destruir a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos”. Além de reafirmar compromissos de honrar contratos e controlar a inflação. Ciro Gomes foi na mesma linha. José Serra apoiou.
A situação das contas externas hoje é seguramente muito mais favorável do que era em 2002, dados o superávit comercial, o nível de reservas, o ingresso de investimento direto estrangeiro. Porém o grau de incertezas na área de finanças públicas e sobre políticas futuras é muito maior que em 2002, dados os déficits primários acumulados há anos (e por vir) e a insustentável situação da crescente dívida pública. A necessidade – urgente – de consolidação fiscal exige reformas e visão de longo prazo. E mais diálogo, como em 2002, embora, como sabemos, a história nunca se repita.
Apenas para ilustrar a magnitude do desafio das reformas, cabe lembrar que a taxa de crescimento da economia brasileira nos últimos 23 anos (1995-2017) foi de 2,4% ao ano em média, enquanto, segundo o FMI, o conjunto de 154 países emergentes e em desenvolvimento cresceu na média anual de 5,3% no mesmo período. Vale observar que, dividindo os 23 anos em três subperíodos – 1995-2002 (8 anos); 2003-2010 (8 anos) e 2011-17 (7 anos) –, as taxas de crescimento do Brasil e do mundo foram respectivamente: 2,4% e 4,2%; 4,1% e 6,8%; e 0,5% e 5%.
É evidente que temos problemas de natureza cíclica e problemas de natureza estrutural ou, dito de outra forma, problemas de curto, de médio e de longo prazos que exigirão reformas com o sentido de urgência que a situação requer.
O mais urgente desafio é a redução das incertezas sobre o grau de entendimento e de comprometimento das lideranças políticas (e do Congresso) com o processo de mudanças e de reformas. E, portanto, das grandes incertezas sobre a nossa capacidade de tê-las efetivamente implementadas em prazo hábil. Há limites para a procrastinação: está a esvair-se o bônus demográfico, e corremos sério risco de ficar para trás em relação a outros países relevantes e de nos tornarmos um país velho antes de nos transformamos num país rico.
Existem no Brasil visões distintas sobre identificação dos problemas mais relevantes, sobre suas inter-relações e, principalmente, sobre as formas mais apropriadas, desejáveis ou efetivas de com eles lidar. Essas legítimas diferenças de opinião, com frequência, se expressam de forma conflitiva como parte de um processo muito mais amplo que a tradicional visão de política como competição pelo poder, com ênfase nos processos eleitorais.
Na verdade, os conflitos numa sociedade de massa que procura se organizar como uma efetiva democracia pluralista, num país marcado por profunda heterogeneidade estrutural e disparidades sociais e regionais, podem ser vistos de duas maneiras básicas: a primeira, negativa, é de lhes conferir capacidade de gerar um tal nível de instabilidade política que possa chegar a comprometer o desenvolvimento econômico e social do país. A segunda maneira básica de ver os inúmeros conflitos que se desdobram continuamente entre nós é como algo que pode, eventualmente, contribuir para a progressiva consolidação da democracia, antes que para seu enfraquecimento.
Não há razão para que, entre nós, não possa prevalecer, ainda que gradualmente, a segunda visão acima mencionada: a de uma certa ideia de um Brasil decente, politicamente democrata e republicano, socialmente progressista e inclusivo, além de economicamente responsável, em particular na gestão das finanças públicas. Esta última não constitui um fim em si mesma, mas sem ela não haverá como o Brasil alcançar as taxas de crescimento da renda e do emprego que constituem o nada obscuro objeto de desejo da maioria dos brasileiros.
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.