Valor Econômico
Fazer uma reforma da Previdência agora é imprescindível para ajustar as contas públicas no longo prazo. Os gastos com previdência social tem vários componentes. Alguns são contrapartida de contribuições feitas no passado, enquanto outros são assistenciais. Um dos componentes assistenciais mais importantes é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), instituído pela constituição federal de 1988. O BPC garante o pagamento mensal de 1 salário mínimo para idosos com 65 anos ou mais e à pessoas com deficiência de qualquer idade, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. O BPC foi regulamentado em 1995 e implementado em 1996. Será que a sua implementação diminuiu a poupança e as contribuições para a previdência entre os mais pobres? Seria necessário reduzir o valor do BPC para estimular a poupança?
Na hora de pensarmos em mudanças no BPC é necessário analisar os impactos que esse programa teve na sociedade brasileira. Como o valor do BPC está atrelado ao salário mínimo, que teve alta valorização nas últimas duas décadas, praticamente não há mais pobreza entre os idosos. A renda per capita mediana de uma família que recebia o BPC era em 2016 de R$ 677, ao passo que no Brasil como um todo essa renda era de R$ 724. Se subtraíssemos a renda do BPC, entretanto, a renda mediana dos beneficiários cairia para R$ 258, abaixo da renda dos 25% mais pobres no Brasil. Assim, uma família que recebe o BPC só não é pobre por causa do valor elevado do programa. Além disso, vale notar que o aumento do valor do BPC foi um dos principais componentes da redução da desigualdade observada no Brasil entre 2001 e 2015. Agora é necessário também acabar com a pobreza entre as crianças.
Mas, será que a poupança entre os mais pobres no Brasil é baixa porque o valor do BPC é muito elevado? Usando dados das pesquisas de orçamento familiares do IBGE, é possível construir uma medida ampliada de poupança familiar que inclui ativos financeiros, imóveis, automóveis e outros bens duráveis. Em 1995 (antes da regulamentação do BPC) a poupança dos 50% mais pobres da população brasileira representava apenas 10% da poupança total da economia brasileira. Em 2002/2003 (após o BPC) essa parcela aumentou levemente para 11,4% e em 2008/2009 ela passou para 11,8%. Assim, a participação da poupança dos mais pobres aumentou ligeiramente desde a introdução do BPC. Mais importante, o valor poupado com relação à renda também aumentou entre os mais pobres nesse período.
Por outro lado, os dados mostram que os 10% mais ricos são responsáveis por metade da poupança familiar no Brasil. Se levarmos em conta apenas os ativos financeiros, os mais ricos são responsáveis por 74% da poupança. Ou seja, essas evidências preliminares parecem apontar que a baixa poupança entre os mais pobres não decorre da introdução do BPC, mas sim do fato de que sua renda é muito baixa frente às suas necessidades básicas de consumo. Porém, serão necessários estudos com técnicas apropriadas para confirmar esse fato.
Pode-se argumentar também que se o valor assistencial for diminuído, o trabalhador pobre passará a contribuir mais para a previdência para conseguir se sustentar quando ficar idoso. Na verdade, parece que os pobres brasileiros só contribuem para a previdência quando estão trabalhando no setor formal da economia. Dados das pesquisas domiciliares do IBGE mostram que em 1995, antes da regulamentação do BPC, somente 6% dos trabalhadores pobres por conta própria contribuíam para a previdência no Brasil e apenas 2% dos trabalhadores sem carteira assinada. Por outro lado, entre os trabalhadores com carteira assinada a taxa de contribuição era de 98%.
Após a introdução do BPC, as coisas não mudaram muito. A porcentagem de trabalhadores pobres por conta própria que contribuía para a previdência em 2015 passou para 8% e entre os trabalhadores informais aumentou para 9%, ao passo que todos os empregados formais contribuíam para a previdência. Desta forma, os dados mostram que a contribuição para a previdência entre os mais pobres depende essencialmente de estar trabalhando num emprego formal e não da probabilidade de receber uma aposentadoria não-contributiva no futuro.
O BPC também teve grande impacto na oferta de trabalho dos idosos. Em 1992, 40% dos homens de 60 a 84 anos (que representavam 6% da população na época) estavam no mercado de trabalho, pois praticamente não havia outra fonte de renda para o seu sustento. Em 2015, a porcentagem de homens nessa faixa etária aumentou para 9% (devido à transição demográfica), mas sua taxa de participação no mercado de trabalho caiu para 25%. Ou seja, atualmente, os idosos no Brasil só trabalham quando querem, não mais porque são obrigados a isso para retirar seu próprio sustento.
Mais ainda, um artigo recente (1) usou técnicas estatísticas sofisticadas para estimar o impacto do BPC e da aposentadoria rural sobre a oferta de trabalho dos idosos. Nós estimamos que 36% dos homens na área rural recebem aposentadoria quando atingem 60 anos e 19% desses deixam de trabalhar quando isso acontece. Na área urbana, 13% dos homens recebem aposentadoria quando atingem 65 anos e 44% deles deixa de trabalhar quando recebem o benefício. Nesse último caso, os efeitos do BPC podem estar misturados com a aposentadoria por idade mínima, já que as idades coincidem nesse caso.
Em suma, mudanças nas regras de previdência são essenciais atualmente no Brasil, devido à transição demográfica e aos altos custos do sistema. Entretanto, ao formular as novas regras, os gestores tem que estar atentos aos dados. Às vezes, incentivos perversos que fazem sentido do ponto de vista teórico não ocorrem na prática, pois há fatores mais importantes que não foram incluídos na análise. No caso brasileiro, por exemplo, há evidências de que o brasileiro pensa muito no presente e pouco no futuro. Além disso, os que ganham pouco tem muita dificuldade para poupar ou contribuir para a previdência, pois não conseguem cobrir nem mesmo suas necessidades mais básicas de consumo. No caso do BPC, as evidências preliminares existentes indicam que mudanças nas regras não aumentariam a poupança nem as contribuições para a previdência entre os mais pobres, apenas os tornariam um pouco mais pobres quando ficarem mais velhos.
1 Aposentadoria e Mercado de Trabalho: uma Análise Usando Regressão Descontínua”, por Gustavo Mentlik, Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu.
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