Folha (publicado em 29/01/2022)
Armíno Fraga e Arthur Aguillar
Em anos eleitorais, é importante recordarmos a distinção entre políticas de governo e políticas de Estado. As políticas de governo são aquelas aplicadas em um mandato, identificadas com o titular, e tendem a mudar à medida que há alternância de poder. Políticas de governo com frequência são curtoprazistas e não têm seguimento.
Políticas de Estado não são identificadas a governos, não se limitam a mandatos, são de longo prazo. O Brasil tem políticas de Estado que funcionam. Um importante exemplo é a política de APS (atenção primária à saúde), que atende a mais de 60% da população em todo o território nacional e é comprovadamente efetiva. Sua atuação ocorre através da ESF (Estratégia de Saúde da Família).
A APS é responsável pelo primeiro e principal contato das pessoas com o sistema de saúde. É lá que acontecem serviços como vacinação, consultas pré-natais e o acompanhamento a portadores de Diabetes e Hipertensão. Para além disso, a APS serve como um mecanismo de referenciamento para serviços de maior complexidade, prestados em unidades especializadas de diagnóstico, terapia e em hospitais.
Ela é baseada na medicina de família e possui orientação comunitária e territorial. Dessa forma, torna-se possível olhar de maneira abrangente e cuidar da saúde de um determinado conjunto de pessoas, ao longo dos anos.
A ESF ampliou o acesso da população a serviços de saúde, e propiciou importantes e bem conhecidas conquistas. A implantação do Programa reduziu a mortalidade materna entre 1996 e 2004 em 39% e a infantil em 36,3%1.
Foi uma contribuição decisiva para que o Brasil fosse um dos poucos países do mundo a cumprir a Meta de Desenvolvimento do Milênio número 4 (redução da mortalidade infantil em dois terços). Um estudo recente mostra que o gasto municipal em saúde, majoritariamente voltado para a Atenção Primária, reduz o efeito que as recessões econômicas têm na saúde da população: a recessão que ocorreu entre 2014 e 2016 estava associada a 30 mil mortes adicionais, especialmente devido a doenças cardiovasculares e de neoplasias.[ x ]
Essas mortes, no entanto, estavam concentradas em municípios com baixo nível de gastos em saúde. Nos municípios que gastaram mais em saúde o efeito da recessão sobre a mortalidade foi baixo ou nulo2.
A cobertura da Estratégia de Saúde da Família se expandiu de 5,6% da população brasileira em 1998 para 48,7% em 2008. Em 2019, 62,7% da população estava coberta3. No entanto, a expansão estagnou, mantendo mais de 37% da população descoberta. Desde 2017 os números de equipes de saúde da família (cerca de 43 mil) e de cobertura populacional permanecem no mesmo patamar.
A primeira razão para a estagnação é orçamentária, que segue carente: a Proposta de Lei Orgânica do Orçamento (PLOA) enviada ao Congresso Nacional para 2022 propõe a alocação de R$ 25,4 bi na Atenção Primária, o equivalente a apenas 17% do orçamento total da Saúde, uma redução em termos reais de 1,93% em relação à proposta orçamentária de 2019.
No geral, descontados os recursos de combate à pandemia, em termos reais o orçamento da Saúde é similar à cifra de 2012, 5% menor que 2019 e o menor dos últimos dez anos4.
Em segundo lugar está a dificuldade de se fixar médicos em localidades remotas. Dados da Demografia Médica 2020 mostram que o Brasil possui em média 2,4 médicos por mil habitantes, substancialmente abaixo da média dos países da OCDE (3,5), mas semelhante a países como os Estados Unidos, o Chile e a Coreia do Sul.
No entanto, o país tem dificuldade de garantir a presença destes profissionais fora das grandes cidades: se as capitais brasileiras possuem em média 5,65 médicos por mil habitantes, fora das capitais essa razão cai para 1,49, e no interior das regiões Norte e Nordeste, para 0,54 e 0,67, respectivamente.
Se o processo de garantir o acesso a médicos para os brasileiros que vivem no interior necessita de intervenção do estado, é preciso ter políticas de Estado efetivas sobre o tema. O programa Mais Médicos, em que pese uma desmesurada politização, contribuiu de maneira decisiva para solucionar este problema. Em 2015, seus médicos representavam 12% de toda a população médica da região Norte.
O Governo Federal descontinuou o Programa e lançou a iniciativa Médicos pelo Brasil, que em três anos de gestão ainda não foi implementada. Agora em janeiro, foi lançado um primeiro concurso para 4.700 vagas, um número tímido quando comparado com os cerca de 17 mil profissionais contratados dentro do âmbito do Mais Médicos.
Um terceiro desafio para a expansão da ESF é a falta de médicos adequadamente preparados para a sua missão e de profissionais como educadores físicos, nutricionistas e fisioterapeutas. Nesse sentido, foi um retrocesso a extinção do apoio financeiro aos municípios voltado para o custeio dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família, os NASF, que complementava as equipes de saúde da família.
Ao mesmo tempo, em dezembro, o Ministério lançou o programa Cuida Mais, voltado para a contratação de médicos pediatras e obstetras, mais onerosos e menos necessários que os mencionados acima.
A Estratégia de Saúde da Família é a base do nosso sistema de saúde. O SUS só tem a ganhar com uma ESF expandida e mais resolutiva e integrada com centros universitários e técnicos de formação de recursos humanos para a saúde.
Listamos acima alguns programas de alta efetividade merecedores de urgente atenção. Cabe ao Governo Federal, seja o atual ou o próximo, ampliar as políticas de Estado que funcionam. A ESF funciona e precisa caminhar para 100% de cobertura o quanto antes.
1 Bhalotra, S., Rocha, R., & Soares, R. R. (2020). Can universalization of health work? evidence from health systems restructuring and expansion in brazil (No. 03).
2 Hone, T., Mirelman, A. J., Rasella, D., Paes-Sousa, R., Barreto, M. L., Rocha, R., & Millett, C. (2019). Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. The Lancet Global Health, 7(11), e1575-e1583.
3 Rocha, R., Mrejen, M., & Coube, M. (2020). Um Decreto para Estradas e a Estrada da Saúde no Brasil (No. 013). Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.
4 Faria, M., Nobre, V., Tasca, R. e A. Aguillar. (2021). A Proposta de Orçamento para Saúde em 2022. Nota Técnica n. 23. IEPS: São Paulo.
Link da publicação:https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2022/01/pela-ampliacao-da-estrategia-de-saude-da-familia.shtml
As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.